
por: Camila Artoni
A própria loucura é uma palavra difícil de conceituar. João Augusto Frayze-Pereira, professor do Instituto de Psicologia da USP, autor de "O Que é Loucura", propôs o tema a universitários e pré-universitários e chegou a diversas acepções diferentes. O grupo apontou as seguintes idéias como resposta: um estado de perda de consciência; um distúrbio orgânico, a doença que existe há mais tempo ha história dos homens; um desequilíbrio emocional cuja origem é o desajustamento do indivíduo dentro da sociedade em que vive; todo tipo de desvio do comportamento pessoal em relação às normas; um estado progressivo de desligamento ou fuga da realidade; uma tomada de consciência de si e do mundo.
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Todos esses enunciados cobrem, com maior ou menor precisão, a noção popular de loucura. Mas não fazem uma distinção que é essencial para a identificação do problema - loucura e distúrbio mental, hoje em dia, não são sinônimos e precisam ser entendidos como coisas diferentes.
Estado natural
Popularmente há uma tendência em se julgar a sanidade da pessoa de acordo com seu comportamento ou com sua adequação às conveniências socioculturais como, por exemplo, a obediência aos familiares, o sucesso no sistema de produção ou a postura sexual. Para a psiquiatria moderna, no entanto, doença mental é a variação capaz de prejudicar a performance da pessoa, seja no trabalho, em família ou em qualquer outra esfera social ou pessoal, afetando sua vida e a das pessoas com quem convive.
O psiquiatra e psicoterapeuta Paulo Urban explica que nem sempre a loucura pode ser associada a uma doença. Às vezes, ela é só um atributo da psique. "A loucura é associada ao transe, ao comportamento desviante. Isso pode se manifestar como genialidade ou como uma negação de normas que faz o louco ser, às vezes, até melhor adaptado do que uma pessoa 'normal'. Já as doenças mentais são um quadro grave e pedem tratamento. A loucura, em muitos sentidos, pode ser um estado natural positivo", diz o médico. "Como o louco do tarô, arquétipo do homem que está entre o tudo e o nada, superior à condição humana."
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A definição de loucura como doença, aliás, é recente na civilização oriental. O seu surgimento acontece quando as incertezas científicas são abandonadas e aparece a medicina racional contemporânea. O divisor de águas é a valorização da razão. É nessa fase, e por esse motivo, que os loucos começam a ser isolados. "No mundo moderno das doenças mentais, o homem não se comunica mais com o louco", afirma Frayze-Pereira. "Com o corte entre razão e não-razão, há, de um lado, o homem racional que encarrega o médico de lidar com a loucura. E, de outro, o louco, que vive uma racionalidade abstrata. Entre eles não há linguagem comum."
Isso nem sempre foi assim. Na Antiguidade , a loucura era considerada uma manifestação divina. A epilepsia, conhecida como "a doença sagrada", significava maus presságios. Se uma pessoa sofresse um ataque epiléptico durante um comício, por exemplo, o evento era interpretado como uma intervenção dos deuses. Era um sinal de que não se deveria acreditar no que dizia o orador.
Raciocínio incomum |
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Uma das razões para isso é que a psicopatologia medieval associava a loucura à possessão diabólica. E embora essa forma de pensar tenha raízes na própria formação doutrinária do cristianismo, o raciocínio acabou funcionando como uma justificativa religiosa para a repressão às heresias ou um recurso para impor a ortodoxia teológica e moral.
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Assim como a idéia da loucura mudou com as épocas, existem também variações culturais. O que nós caracterizamos como loucura pode não ser para um outro grupo. A noção de loucura é diversificada e relativa, uma vez que cada grupo tem uma linguagem particular para defini-la, e essas diversas linguagens implicam também práticas diversas. Enquanto em algumas regiões o louco participa do convívio familiar, em outras o paciente é isolado. Há aqueles que, ao depararem com esses problemas, buscam soluções na religião. Outros procuram a intervenção médica ou psicológica.
Fim da linha para os alienistas |
![]() No Brasil, o problema da instituição psiquiátrica vem sendo discutido por diversos setores da sociedade há pouco mais de 15 anos. O Movimento Nacional da Luta Antimanicomial nasceu em 1987 entre os trabalhadores de saúde mental, que decidiram se posicionar contra o encarceramento de pacientes e propor alternativas terapêuticas ao portador de transtornos psíquicos. Mais de 60 mil pessoas estão encarceradas no país. E as formas de tratamento que assombravam os manicômios há quatro séculos não foram abandonadas, apenas modernizadas. Mesmo portadores de doenças mentais não-agressivas são submetidos a sedativos, eletrochoques, indutores de coma e até lobotomias. |
À mercê da moral
Essas diferentes posturas em relação à loucura mostram que, ao longo da história, o juízo de valor foi o principal termômetro da normalidade. "Seja movido pela cultura ou por interesses mercadológicos - que é o que faz, hoje, a indústria farmacêutica ao criar medicamentos para doenças que nem existem -, um discurso sempre vence. É a ação do dominante sobre o dominado. A classificação e marginalização de algumas posturas como doenças vem, muitas vezes, do preconceito contra o que é ainda desconhecido", afirma o psiquiatra Paulo Urban.
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Mais recentemente, as pesquisas começaram a apontar para causas bioquímicas das doenças mentais. A relação observada entre doenças orgânicas e mentais levantou a lebre para a existência de razões bioquímicas para distúrbios psiquiátricos, o que despertou um grande interesse pelas bases neuronais do comportamento humano. Graças a isso, as descobertas avançaram. Hoje, sabe-se o papel dos neurotransmissores e entende-se sua importância nas alterações de humor.
Enigma persiste
Mas a neurociência não é capaz de dar respostas completas sobre a causa de todos os transtornos. Há outras doenças cujas causas orgânicas permanecem obscurecidas em alguns pontos. "Pacientes com psicose, por exemplo, não apresentam nenhuma alteração biológica. Anatomicamente, seu cérebro também é perfeitamente saudável", diz Urban. "A neurociência é avançada tecnicamente, mas não é exaustiva. Por isso, não pode ser considerada o único discurso da verdade."
Conheça algumas faces que a loucura pode ter
Défcit de atenção (DDA)
O que é: Transtorno neurobiológico caracterizado por desatenção, inquietude e impulsividade
Sintomas: Dificuldades na escola e no relacionamento interpessoal, problemas com regras e limites
Como começa: Aparece na infância e freqüentemente acompanha o indivíduo por toda a sua vida. Causas são genéticas
Tratamento: Psicoterapia
Síndrome do pânico
O que é: Ataques recorrentes de ansiedade aguda e intensa
Sintomas: Palpitações, sudorese, tremores, falta de ar, dores no peito, náusea, vertigem, ondas de frio e calor, medo da morte, medo de enlouquecer
Como começa: Causas podem ser psicológicas (reação a um estresse), físicas (ex. abuso de álcool) ou genéticas
Tratamento: Medicação com psicoterapia
Esquizofrenia
O que é: Psicose em que o paciente se afasta da realidade e acaba construindo um mundo particular
Sintomas: Alucinações auditivas e somáticas, sensação de ter as ações controladas por algo de fora
Como começa: Sem causas conhecidas
Tratamento: Em 90% dos casos é incurável
Bipolaridade (PMD)
O que é: Transtorno afetivo caracterizado por altos e baixos
Sintomas: O paciente apresenta períodos de intensa depressão, podendo levá-lo ao suicídio, e períodos de intensa euforia (mania) que causam graves distúrbios sociais
Como começa: Não depende de disparador; causa é genética
Tratamento: Reguladores de humor podem evitar os períodos de recaída
Personalidade múltipla
O que é: Distúrbio dissociativo em que a pessoa se comporta como se estivesse "fora de si"
Sintomas: Mudanças bruscas de comportamento, geralmente autodestrutivas
Como começa: Pelo que se sabe até agora, é conseqüência de um sofrimento muito grande na infância ou no início da adolescência, principalmente abuso sexual
Tratamento: Medicação com psicoterapia
TOC
O que é: Obsessão e compulsão com ansiedade extrema
Sintomas: Repetição involuntária de gestos, rituais, pensamentos e atividades, apesar da noção de que nada disso faz sentido
Como começa: Não se sabe ainda a causa exata, mas pesquisas sugerem que exista uma disfunção de neurotransmissores em certas regiões do cérebro
Tratamento: Medicação com psicoterapia
Demência
O que é: Deterioração da função mental
Sintomas: Desorientação, perda de memória, incapacidade de interpretar aquilo que sente, ouve ou vê, dificuldade na realização das atividades cotidianas, fala e escrita comprometidas
Como começa: Pode decorrer de lesões cerebrais ou de complicações vasculares. Ocorre na velhice
Tratamento: Cirurgia
Anorexia
O que é: Distúrbio alimentar (temor intenso de ganhar peso)
Sintomas: Emagrecimento, destruição do esmalte dentário, pele seca e amarelada, cabelos quebradiços, visão distorcida do próprio corpo
Como começa: Causa desconhecida. Provavelmente componentes psicológicos, biológicos, ambientais e culturais misturados
Tratamento: Antidepressivos, psicoterapia e orientação nutricional